Iury Lima – Da Revista Cenarium
VILHENA (RO) – O Ministério Público Federal (MPF) está buscando provas de um cemitério indígena localizado em Vilhena, no interior de Rondônia, que foi tomado por uma plantação de soja depois que uma grande empresa do agronegócio adquiriu o terreno onde fica o solo sagrado para diversas etnias.
O inquérito civil ocorre agora, pouco mais de um ano depois que um professor da cidade apresentou denúncia ao órgão. O local fica a 500 metros da antiga Estação Telegráfica da cidade, inaugurada há mais de um século, e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A área deveria ser preservada, na avaliação de especialistas, mas o tombamento contemplou apenas a pequena casa onde o Marechal Cândido Rondon – agora um museu – se comunicava com o mundo. Já o cemitério, onde estão enterrados indígenas Nambiquara, Paresí e pioneiros vilhenenses, caiu no esquecimento: o que antes foi um território sagrado, há mais de 20 anos vem sendo solo fértil para grandes lavouras.
É um espaço consideravelmente pequeno: apenas 400 metros quadrados, delimitados dentro do lote, hoje, de propriedade da Masutti Agropecuária Ltda. Os pesquisadores não sabem ao certo quantos corpos estão sepultados, mas estimam cerca de 100. O terreno pertencia à União e ficou sob a responsabilidade da Força Aérea Brasileira (FAB) até 2021, quando foi vendido via licitação.
À REVISTA CENARIUM, o MPF informou que o Iphan ainda não respondeu aos questionamentos feitos pelo órgão e o inquérito segue, por enquanto, como procedimento administrativo, ferramenta que pode resultar em uma futura Ação Civil Pública (ACP).
Recurso após arquivamento
A denúncia foi arquivada ainda em 2022, depois que o Iphan, a FAB e a Masutti afirmaram não reconhecer a existência do cemitério indígena e nem de documentos que comprovem a delimitação do lugar. Autor da denúncia, o professor de Língua Portuguesa Cledemar Jeferson Batista recorreu da decisão.
“O que a gente quer é que o Poder Público se mobilize, que as instâncias responsáveis pela preservação da história e da memória façam alguma coisa em âmbito municipal, em âmbito estadual e também no federal”, afirmou o professor à CENARIUM. “Não é preciso que as sepulturas ainda existam. Trata-se de um espaço que tem que ser demarcado”, defendeu.
Batista conta que quando recebeu a denúncia do arquivamento, buscou materiais que pudessem comprovar a existência e a história do local. Ele recorreu a publicações de jornais antigos e de livros publicados por indigenistas, falando sobre a região, para rebater as justificativas dos citados. “Faltou um estudo mínimo”, criticou Cledemar Jeferson.
Desrespeito à memória
A CENARIUM esteve no local, em fevereiro de 2022, em busca das memórias soterradas pelo agro. À reportagem, Luiz Antônio Zonoecê, uma das vítimas da profanação do território, externou indignação. Aos 66 anos, o indígena da etnia Paresí tem dois irmãos enterrados na região há quase tanto tempo quanto a própria idade.
“Passaram máquina em cima, tirando totalmente a área em que eram enterradas as pessoas. Então, foi um desrespeito com a comunidade, com a história, principalmente com quem tem pessoas enterradas ali”, desabafou.
Hoje, Zonoecê não pode mais repetir o simples costume de quando era criança, de prestar homenagens aos familiares falecidos. Na época da entrevista, ele relembrou que o cemitério já existia, naquele mesmo local, quando o pai dele chegou a Vilhena, na década de 1940. Hoje, ele só pede respeito e preservação do local.
Esquecimento
Cledemar Jeferson Batista explica que o terreno instalado na vizinhança do que hoje é um parque cultural dedicado a Marechal Rondon, construído a partir das instalações da pequena habitação onde o militar se alojou durante a expedição telegráfica, foi preservado até, pelo menos, os anos 1980.
“A partir de então, houve um abandono do Poder Público local, mesmo porque a área foi passada para aeronáutica e, desde então, a gente vem batalhando para que algo seja feito”, destacou o professor. É um local que, segundo ele, também pode abrigar restos mortais de pessoas não indígenas “que fizeram parte da Comissão Rondon e moradores que acompanhavam os telegrafistas”.
O que nos motivou a essa denúncia foi o fato de realmente extrapolar todos os limites (…) A denúncia não é contra a empresa que ganhou a licitação, mas tem o objetivo de despertar a população local e também os governantes sobre a responsabilidade, afinal de contas, corpos foram enterrados naquele espaço”, afirmou.
Entidades acompanham
A Presidência do Conselho Estadual de Política Cultural (CEPC) de Rondônia cobrou providências e chegou a organizar um abaixo assinado virtual para reverter a situação. Além da entidade, a Associação Ecológica Guaporé – Ecoporé também acompanha a situação de perto.
À CENARIUM, o advogado, professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir) e pesquisador associado da Ecoporé, Vinicius Miguel, afirma que a situação expõe a inércia de órgãos como o Iphan e destaca um processo de apagamento contra povos originários e tradicionais.
“Isso é algo enraizado, inclusive, nas instituições (…) Afinal, nós estamos todos sobre territórios e terras tradicionalmente indígenas. Povos indígenas, estes, que foram alvo de um genocídio da ação não indígena, da ação do Estado brasileiro”, criticou o advogado.
“Quando algum responsável pelo órgão responde dizendo que não tem informações sobre o assunto, isso também mostra uma baixa densidade qualitativa dos quadros desses órgãos. Mostra que há tempos nós não temos, por exemplo, concursos para arqueólogos, antropólogos, sociólogos e historiadores em todos esses organismos”, afirmou ainda.
Ele vê também um “quadro trágico de negligência” e de “intencionalidades” no apagamento da cultura e da memória, “na tentativa mais profunda de devastação e depredação de qualquer vestígio de uma Amazônia histórica, cultural e arqueológica”.
Citados ignoram contato
A CENARIUM questionou a Força Aérea Brasileira, o Iphan e a Masutti Agropecuária Ltda, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.